O CCSP é como um barco. O barco está a deriva na cidade ou a cidade deriva em seu convés?
Assim como “La nave” de Fellini o CCSP é um pequeno cosmos da cidade. Não digo “micro” por que lá, nada é micro. Lá o espaço se engrandece. Um espaço que se abre para deriva da vista, pela 23 de maio, pelos prédios da Vergueiro, pelo vão - antes rio, antes navegável, antes fluído de águas e não de velocidades. O Barco na antes margem, encalhado e voador a um só tempo. Seus declives ferro-vitreos, seus muros de tijolos inclinados. Rampa linha, jardim linha, metrô linha.
O vidro, a transparência e as Passagens nas palavras de Benjamin, estão lá. De modo diferente com certeza . Mas lá: “A decoração dos interiores defende- se contra a armadura de vidro e ferro com seus tecidos”. Um amigo arquiteto queixou-se dos bancos no CCSP : interfere abusivamente na arquitetura. Mas os corpos querem descansar.
As repartições, os repartimentos, as partilhas e partidas se alojam no convés longo. Espaço aberto e repartido, igualmente.
A cada mesa ocupada vêem-se as distâncias e as proximidades. O hálito do convívio perpassa um inegável sentimento de solidão. Porque? A partida de xadrez que separa no tempo seus jogadores: lance- contralance. A namorada que se pendura em um adolescente preocupado com a prova de Física. O albergado que estuda algo sobre a transcendência. Os street dancers tão ocupados com suas próprias habilidades.
Na biblioteca, aqui e ali, alguém que se perdeu, alguém que foi perdido. Uma moça solfeja com os olhos debruçados numa partitura – está só. Um grupinho prepara um espetáculo chamado: Cabaré em Chamas. Vêm-se refletidos nos vidros do prédio e se perdem em suas próprias dificuldades-adolescência.
Mas depois das 20h não. Ai, num canto escuro, os casais entrelaçam as pernas antes de embarcar nos últimos trens do metrô.
Porque os lugares de convívio nos lembram do não convívio, da dificuldade?
Talvez o nosso mais inconcebível desejo diante desta cidade/precariedade, seja estar só. Só e em silêncio, em paz, refugio. Só, sentado em um banco, olhando a frente, desolhando, derivando. Apenas isto. O espaço público como lugar do convívio consigo.
Talvez não seja a dificuldade do viver junto que se imponha neste espaço aberto e recortado, mas sim a dificuldade de estar consigo. Reversão da lógica. Já dizia Hanna Arendt: a esfera social tomou conta da esfera pública e da privada. Não vivemos o campo público, o campo do discurso, do nascer para o mundo , assim como não vivemos o lugar privado, o espaço da incubação, do escuro, do nascimento e da garantia biológicos.
Paradoxo: o Eu se define pelo Outro, mas um mundo sem Eus é um mundo sem Outros.
Então o egoísmo. O egoísmo como desafio da auto-poiésis, da criação de si mesmo diante da desertificação dos aglomerados, congestionamentos, ruídos, informações. Não apenas o egoísmo visto pelo ângulo da moralidade humanista, e também, não considerado como nova ética. Mas como, talvez, a pobreza de experiência que nos fala Benjamim. Como tabula rasa. Como percurso necessário na problematização do encontro com o outro.
O espaço público, de hoje em diante tornado lugar para estar apenas e germinar. Uma vez que a residência se dissolveu na hiper atividade da convivência, da demanda do outro, e o espaço público não contêm o encontro, ainda.
Não se trata de tornar privado o que é público. Se trata de acolher a possibilidade de diferentes subjetividades como conformação dos elementos que se encontrarão na ágora pública, depois.
Lembrar que é possível se des-espertacularizar, não se expor, parar e não mais avançar vertiginosomente. Contrapor o movimento da suspensão à êxtase da velocidade. Revelar o que não pode ser revelado de tão exposto.
Falemos da deriva, pois. Como se conforma a pscicogeografia deste barco? Quais os limites da embarcação que devem ser expandidos, ultrapassados?
É preciso encontrar um ponto de equilíbrio e escuta para vislumbrar um caminho. É preciso demorar-se, morar em si. E daí sim, trilhar o caminho regido pela percepção dos derivadores. Avançar as fronteiras.
Por hora, o demorar-se nos mostra a necessidade do demorar-se. E este revê-la a fronteira inaugural. A necessidade do limite pele, do limite moldura, do limite margem. A travessia vem da margem. O rio é rio, porque margem. O egocêntrico afirma-se margem. Ele precisa disso. Lastro.
Nossos remos-ferramentas são procedimentos que estranhem o continuum público-privado-social, estranhem o continuum eu-outro-muitos. Propomos o escondido como possibilidade: ainda há algo a decifrar. Propomos o encoberto. Propomos o primeiro exercício de nomeação: O que é isto que não é aquilo nem aquilo outro? Nomeemos as margens em novos contornos.
Assim o exercício do limite também se revela o exercício da linguagem.
Como diz Agamben: A expropriação do comum numa sociedade do espetáculo é a expropriação da linguagem. Quando a linguagem é seqüestrada por um regime democrático-espetacular, e a linguagem se autonomiza numa esfera separada, de tal modo que ela já não revela nada e ninguém se enraíza nela, quando a comunicatividade, aquilo que garantia o comum, fica exposto ao máximo e entrava a própria comunicação, atingimos um ponto extremo do niilismo.
Paradoxo novamente: as fronteiras se estabelecem pala ausência de fronteiras. Sem contorno, o mundo é uma prisão.
Debord disse na Internatonale Situationniste, “as diferentes unidades de atmosfera e de habitação, hoje, não se sobressaem exatamente, mas estão cercadas de margens fronteiriças mais ou menos extensas. A mudança, a mais geral, que a deriva conduz a propor, é a diminuição constante dessas margens de fronteiras, até a sua supressão completa.” Mas talvez devessemos olhar para extensão desta fronteira que hoje se interioriza e nos atravessa.
Gille Ivain, em 1964, escreveu em Cartas de Longe, após ter passado 5 anos numa clínica psiquiátrica : « ... a deriva contínua é um perigo na medida em que o indivíduo avança muito longe (não sem base, mas...) sem proteções, é ameaçado de explosão, de dissolução, de separação, de desintegração. E é a retomada no que se nomeia “a vida corrente”, isto é, claramente “a vida petrificada” ”.
Maria Tendlau
Maria Tendlau