Em que ponto estamos diante do descampado?

O que nos provoca inicialmente nos impulsos textuais O Declínio do Egoísta Johann Fatzer e Heracles 2 ou a Hidra, e na história da Fordlândia,  para a criação de uma dramaturgia própria, e sua encenação, é a existência de um impasse. Há uma suspensão, uma interrupção, uma inércia presentes nesses materiais, provocadas por uma espécie de deslocamento dos personagens em relação ao espaço do confronto e à tentativa do controle, geradas por manipulações externas, internas e/ou por sistemas não identificados pelos protagonistas.

Em Fatzer, quatro soldados desertam na 1ª Guerra Mundial – que consideram ser uma “guerra de outros” - e se vêem num campo deserto, muito semelhante ao descampado de Esperando Godot, de Beckett. Posteriormente, reclusos num porão, esperam a possível revolução que poria fim a guerra. Na luta pela sobrevivência, na tentativa de organizar a convivência, a violência volta-se contra o próprio grupo e o soldado Fatzer acaba executado pelos companheiros.

Em Heracles, o herói está numa floresta a caminho da batalha. Deve cumprir essa tarefa, entre as outras onze. Quando se dá conta, envolvido pela floresta, descobre que estar na floresta já é a batalha. Ele quer então desistir, mas a batalha/floresta o mede, o sufoca e o devora. Ele está no interior, no seu centro, e não em um dos dois lados. Deslocado, já não consegue agir, não consegue senão abandonar-se.

Já na história verídica da Fordlândia, Henry Ford constrói cidade e fábrica no coração da Amazônia, no ano de 1927, para maximizar a extração da borracha e a fabricação de pneus. Vemos um “herói” capitalista na tentativa de controlar a natureza e o comportamento dos seringueiros, contrariados pela nova cultura que a eles se tenta impor. Ford fracassa e o que resta são ruínas de uma cidade. Fracassa a tentativa de deslocar o centro da produção industrial de automóveis para um lugar absolutamente distante dessa realidade, o deserto verde da Amazônia.


Nos três casos, os protagonistas são envolvidos em uma batalha que tentam compreender, planificar. As questões que se colocam são várias. A partir de onde, de que ponto, eles lutam? Lutam de fora, de dentro, lutam pela batalha ou contra ela? É possível não lutar?
E agora, o quê? Qual é nosso ponto Fatzer?

Fatzer - “E assim avança a massa ordenada da humanidade por falsos objetivos. E assim, da nova arte e do prazer em manter o ritmo. O ponto representa Fatzer. Este sou eu e aqui contra mim uma linha sem fim. Mas aqui vejo de repente uma outra linha atrás de mim que também está contra mim. O que é isso?”

Deus é o zero

Recentemente quando
Andávamos sobre a ponte de ferro
Às sete horas da tarde e
Como não sabíamos
O que fazer, paramos
Contemplando a água
Nós olhávamos
Lá para o lado claro
Enquanto ele
Olhava o escuro.

B. Brecht

Suspensão

A idéia de suspensão nos inspira formalmente a escrita de uma dramaturgia também em suspensão. Na farmacopéia, na química, suspensão é um estado provisório na mistura de um liquido ou gás nos quais, o material particulado encontra-se em movimento. É um tipo de mistura heterogênea em que, ao contrário da solução, o solvente não se dissolve no soluto. Uma suspensão ideal tem como características a diminuição da velocidade de separação, ou seja, nesta mistura, as partículas em suspensão demoram a se sedimentar.


Esta imagem nos inspira a experiência de criar uma estrutura de dramaturgia, em que os elementos não se fundem, mas que permaneçam suspensos em uma mistura da qual não se pode dizer que é homogênea, mas que, também, não facilita a separação dos elementos antes de sua lenta sedimentação. A sedimentação neste caso, se dá na leitura dos espectadores. Pesquisamos uma escrita cênica em que a leitura de cada elemento exija do observador uma espécie de divagação individual e única. A suspensão está presente na cena e se espelha no estado proposto aos espectadores para sua leitura.


Registros de procedimentos de criação

Os procedimentos de criação que investigamos, e mesmo uma “ética da criação”, presentes nas intervenções cênicas que criamos, podem ser percebidos formalmente nos seguintes aspectos: convivência efetiva entre diferentes estilos e linguagens; permanência das características individuais de atuação, privilegiando a “apresentação” de cada atuante  acima da qualidade de representação; e, por fim, o desvelamento dos processos de criação na cena, com ênfase numa espécie de “poluição da informação”. Trabalhamos por uma técnica de soma, de sobreposições e atritos de diferentes matérias, em contraponto a uma idéia de limpeza, síntese ou redução. Este procedimento possibilita revelar uma precariedade que dialoga com a própria condição da cena (com seus acordos e jogos instáveis estabelecidos na convivência), mas também com a condição política de precariedade em que vivemos. Assim, o acabamento cheio de arestas nos permite revelar um humor mais sarcástico, uma exposição do irresoluto, certa perversidade que a condição de precariedade nos impõe.

Onde irá acontecer o irresistível passeio de Héracles/Fatzer?



Registramos o processo de criação no desenvolvimento de materiais cênicos, videográficos, performativos e de composição espacial, a partir das propostas enunciadas pelos artistas no grupo, discutidas e experienciadas. Damos ênfase à sequência deste criar coletivo, desde sua pergunta geradora (pergunta mantra) até sua proposição poética pelo coletivo. A importância deste registro é ampliar o diálogo entre diferentes criadores e o público apreciador (uma vez que todos podem ter acesso a este registro na web), desvelando os passos de construção da obra. Acreditamos que o processo compartilhado se converte em produtos poéticos que compõem um seriamento de obras: o ponto final da criação é o ponto atual da criação.

O caráter destrutivo

"O caráter destrutivo é jovial e alegre. Pois destruir remoça, já que remove os vestígios de nossa própria idade; traz alegria, já que, para o destruidor, toda remoção significa uma perfeita subtração ou mesmo uma radiciação do seu próprio estado. O que, com maior razão, nos conduz a essa imagem apolínea do destruidor é o reconhecimento de como o mundo se simplifica enormemente quando posto à prova segundo mereça ser destruído ou não. Este é um grande vínculo que enlaça harmonicamente tudo o que existe. Esta é uma visão que proporciona ao caráter destrutivo um espetáculo da mais profunda harmonia." (W. Benjamin – O caráter destrutivo)



HERÁCLES, ou a HIDRA friccionado em ÉDIPO REI





HERÁCLES,  ou a HIDRA  friccionado em ÉDIPO REI

procedimento de Wilson Julião

PRIMEIRA ETAPA – Composição, registro e a busca do ego de um semi-deus
O elenco chegará e será convidado a se paramentar/enfeitar com  fitas de isolamento para um “ensaio fotográfico bruto”.
Mariana será a fotógrafa e tem por objetivo encher o ego dos modelos, com inúmeros elogios e palavras de encorajamento. Alexandre, Fernanda e Anna, saberão dos objetivos e serão convidados à também elogiar e “mimar” os modelos.






SEGUNDA ETAPA – Transporte, fábula e violência.
Ao final da primeira etapa, o elenco é informado que farão uma saída e que podem manter os paramentos ou não, mas que NECESSARIAMENTE, terão os olhos vendados com as fitas e que não deverão tirar-las durante todo o percurso.  São informados que serão conduzidos até o carro1.
Secretamente, o carro 2,  sairá junto com o carro 1 e o acompanhará durante o percurso. É aconselhável que o elenco pense que os demais ficarão no GAG.
No carro 1, o elenco ouve versões resumidas e pops da fábula de Édipo.
O carro 2 acompanha o carro 1 até uma rua mais pacata.
Carro 1 sinaliza com pistas acesos e carro 2 emparelha com carro 1 e buzina forte. Trava-se uma discussão de trânsito, regada à buzinadas.
Terminada a discussão, carro 1 sai, cantando pneus. Carro 2 acompanha, discreto.
Comboio chega numa praça.

TERCEIRA ETAPA
O elenco é convidado a explorar por alguns minutos a praça. A equipe devem colaborar para que os vendados não se machuquem. Exploração de caminhos, árvores, limites, topografia, arquitetura, cheiros, etc. TUDO NO MAIS ABSOLUTO SILÊNCIO. Os integrantes do carro 2 estão lá, mas não serão percebidos pelo elenco...

QUARTA ETAPA
No carro 1, em retorno, a pergunta:
“No texto do Muller, O Herácles está na batalha e ainda não percebeu.  E na vida de vocês, qual o equivalente?  Quando vcs estiveram já dentro da batalha e só o perceberam bem depois??”
O procedimento é gravado em áudio sem a percepção dos vendados.

QUINTA ETAPA
Retorno ao GAG. Chegada dos  vendados até sala, entrega de 03 folhas grandes de papel em branco, mais canetas diversas:
Folha 1: Desenhar/registrar a impressão da “floresta” visitada, inclusive os trajetos de ida e volta.
Folha 2: desenhar/registrar o fato rememorado, o quando” estiveram na batalha e não se deram conta.”
Folha 3: criação de uma PERGUNTA-MANTRA a partir da experiência vivida.